Para o artista que, a cada processo de criação procura investigar possibilidades cênicas que possam dialogar com o seu tempo, o risco parece ser algo inevitável. A atualidade é um risco, tal qual o fenômeno teatral, pois apresentar um espetáculo pressupõe uma comunicação com o momento presente. No entanto, o que diferencia uma produção de outra são as escolhas relacionadas aos procedimentos para a condução e realização dessa comunicação.
Historicamente, a base para a maioria das análises teatrais foi, sem dúvida, o texto teatral. A materialidade da escrita, se comparada ao caráter efêmero da encenação, atingiu proporções inigualáveis. No entanto, com a evolução da encenação e desconfiados dessa visão, alguns pesquisadores, ao analisarem certas características das produções teatrais de seu tempo, identificam uma ampliação do conceito de dramaturgia. Contudo, a palavra dramaturgia – que do grego significa compor um drama –, ainda hoje é, geralmente, utilizada para designar a escrita de um texto. Essa redução do termo em questão é perfeitamente compreensível em função de uma herança clacissista, na qual o texto dramático era sinônimo de uma escrita que propiciava uma realização cênica por meio de diálogos ou rubricas. Mas a própria evolução do espetáculo teatral pode comprovar que compor um drama também inclui os expedientes que abarcam a materialização da cena.
Ao elaborarmos, em parceria com o Núcleo Cênico Arion e o Teatro das Epifanias, o projeto Ateliê Compartilhado, a nossa intenção foi realizar investigações relacionadas à dramaturgia contemporânea. Para a criação do espetáculo Amada, mais conhecida como mulher e também chamada de Maria, os integrantes da Cia. Artehúmus de Teatro elegeram alguns desafios. Quais os procedimentos a serem adotados para que os integrantes pudessem realizar uma leitura cênica além do discurso do dramaturgo? Como inserir a visão de mundo de um coletivo criador diante de um tema esboçado previamente em um texto? Em que medida e como ampliaríamos o discurso da narrativa? Como tornar o espectador um elemento ativo dentro da narrativa, a partir das características estruturais da dramaturgia do texto e da dramaturgia da cena?
Na busca por respostas a essas questões, tomamos como base estudos relacionados à condução de criação do espetáculo teatral, assim como algumas conceituações que põem em evidência possibilidades de ampliação do discurso da encenação.
Patrice Pavis, ao considerar as interferências de uma equipe de criação em relação ao texto, aponta algumas questões. Para o teórico, a dramaturgia engloba o conjunto de escolhas estéticas e ideológicas do coletivo criador, ou seja, compreende também elementos da cena, como, por exemplo, a escolha do espaço cênico, a linearidade ou não da estrutura narrativa, a interpretação do ator, entre outros aspectos. Assim, o simples ato de mostrar uma fábula em relevo, isto é, materializá-la por meio da cena, pode alterar significativamente o discurso do autor. Por conseguinte, dependendo da condução e dos objetivos da equipe de criação, algumas experiências atingem uma “explosão e proliferação de dramaturgias”.
Jean-Pierre Sarrazac, autor que se dedica à análise de experiências teatrais contemporâneas, identifica outras possibilidades de discurso por meio da figura ou personagem criatura. Temos, segundo a visão de Sarrazac, não mais a singularidade de uma persona, mas uma amplificação das características de um sujeito multifacetado – especificidades que podem afastar o discurso psicológico do intérprete e, conseqüentemente, alargar as possibilidades de leitura das situações.
Em Amada, mais conhecida como mulher e também chamada de Maria, optamos por conduções bem próximas a essas, ou seja, a base não foi construir a trajetória de uma personagem, mas investigar a atitude do ator diante de cada situação da ficção. Porém, não se trata de trazer à cena estranhamentos que definam o que é ficção e depoimento; ao contrário, o desafio é mesclar essas duas potencialidades sem distingui-las. Em outras palavras: embora os atores tenham delineado figuras ficcionais, durante todo o espetáculo há um entrelaçamento entre a ficção e a visão de mundo do intérprete diante do assunto.
Diante dos apontamentos citados, parece que o desafio de nosso tempo enquanto artistas é encontrar expedientes pedagógicos e cênicos que permitam à equipe de criação posicionar-se diante do assunto tratado. Não se trata mais de por em cena um texto, mas, essencialmente, encontrar maneiras de ampliar o discurso fabular e, conseqüentemente, permitir aos envolvidos uma criação de poéticas que venha interferir na dramaturgia do espetáculo como um todo. Esses procedimentos, além de privilegiarem os diferentes pontos de vista de uma equipe de criação, reverbera diretamente na percepção do espectador. São lacunas que podem chegar à cena e permitir ao receptor diferentes possibilidades de leituras da obra.